sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Escutando o mundo que existe fora de mim

Tenho certeza que aqueles/as que lutam pela liberdade, pelo direito a democracia, pela igualdade social, pela participação e construção coletiva das decisões que afetam a vida danossa equipe de trabalho, do grupo pertencem, da comunidade que participamos, queremo construir a o futuro a partir de prática cotidiana.

Neste ano, um aspecto nesta prática cotidiana da sociedade que projeto e imagino constrir, percebi e vicenciei como contradição. Apesar de lutar contra o autoritarismo nas relações vivenciei minha forma de ser autoritário. Não é um autoritarismo que a maioria das pessoas percebem. Não, este é bem mais sofisticado. O que as pessoas vêem em mim é a participação em decisões coletivas. No entanto, só eu sei a quantidade de vezes que não quis ouvir o que estava se falando em uma reunião ou em uma conversa a dois. Só eu sei a quantidade de vezes que não escutei por supor saber, pelo poder da dedução, exatamente o que o outro iria dizer, e, portanto pora que escutar? Somente ouvi como um murmúrio, como aquele que vem da rua durante a reunião. Enquanto isto preparo minha fala para quando chegar minha vez de falar. E falo com a autoridade de quem está com a melhor informação, a melhor afirmação sobre os fatos e as melhores alternativas. Para validar o que os outros disseram faço referência ao que um disse, ao que outro pensa e disto concluímos que não estou sozinho.

Existem muitas formas de autoritarismo e aprendi com Rafael Echeverria que uma das mais cotidianas é não escutar o outro. Isto significa tirar do/a outro/a a voz e o direito de ser escutado/a. A fala do/a outro/a se realiza na minha escuta, não no ato de falar. Quando não escuto, não lhe dou existência, não lhe dou autoridade para que me falar. Exercendo autoridade sobre sua fala, sou autoritário.

Normalmente escutamos quem tem mais autoridade que nós ou concorda com o que falamos. Não escutamos aqueles/as que necessitam ser escutados. Não falo do menino que pede esmolas ou do velho que mora na rua e tem uma historia de vida, estas pessoas que todos os dias esbarramos nas ruas sequer têm a sensação de que existem socialmente, e, portanto, nem nos dirigem a palavra. Ainda falo daqueles/as que nos falam imaginando que estamos comprometidos em compreendê-los. No entanto, descomprometidos, lhes arrancamos a existência no simples ato de não escutarmos para compreender o que lhes afligem quando dizem que NÂO, o que lhes empolga quando dizem que SIM, ou o que pensam sobre o que estamos falando.

Só como exemplo quando em uma reunião (e isto já tem nos incomodado), estamos conectados em notebooks e celulares, acreditamos que é possível dividir a atenção entre os ouvidos e os olhos como se a comunicação não fosse um complemento destes dois sentidos. Só descobrimos seu poder quando assistimos a um filme sem música, ou quando colocamos uma música na seleção de fotos dos filhos e nos emocionamos, pois percebemos como é extraordinária e nítida a compreensão do que queríamos dizer usando os dois sentidos.

Acredito estar fazendo o melhor de mim quando estou numa reunião, num diálogo, ou escrevendo como agora, mas para um Socialista e Ateu, dou graças a Deus por não estarmos vivendo em um momento revolucionário no sentido histórico do termo. Por não estarmos preocupados em escutar para compreender o outro, estaríamos nos matando. Começaríamos por nossos desafetos mais próximos, os dirigentes que nos fizeram mal feitos dentro do nosso partido, entraríamos em luta com as várias vertentes de esquerda e visões de socialismo, depois encontraríamos entre nós mesmos os momentos em que nos sentiríamos traídos, por não sermos capazes de compreender a atitude do outro, por estarmos mais preocupados em lhe cobrar coerência. Não nos colocamos a possibilidade de compreender seu dilema de decisão, ao contrário, como quem tem de dar o exemplo aos demais, lhe damos um lugar em que todos podem ver: o da vergonha. Isto não significa que não haja erros e responsabilidade, mas que é imponderável aprender a escutar para aprender a responsabilizar.

Parece estranho comparar o simples ato de escutar às atrocidades que somos capazes de fazer na historia da humanidade ou no cotidiano de nossas relações pessoais. Mas é só se colocar num lugar de poder e ver em perspectiva esta simples atitude que temos ou deixamos de ter, todos os dias, quase sem perceber, para perceber seu impacto. Pode ser o papel de pai e mãe, ou a coordenação de equipe, um cargo de chefia, uma liderança de bairro, dirigente partidário, um mandato parlamentar ou mandato executivo.

Lembrei de uma frase do poema de Bertold Brecht, “nós que lutamos pela amizade não soubemos ser bons amigos”. Aprender a escutar como quem quer compreender o outro para aprender sobre sua forma de ver o mundo e as coisas do cotidiano, é para mim, hoje, uma tarefa revolucionaria que deve estar no intimo de cada um. Um dirigente que não consegue escutar o que alegra as pessoas, o que as impulsiona para vida, o que lhes dá ânimo e perspectiva ou o que lhes dá desesperança e dor, é um dirigente que atua para existir somente para si como dirigente, não para dar existência a vida que pulsa a sua volta, somente para existir como pai, sem dar existência ao filho, para existir como namorado/a, marido/esposa, sem deixar existir a mulher ou homem.

Assumo o compromisso comigo mesmo neste ano que termina e outro que começa, de aprender a escutar e seguir escutando, o que é dito não só pelas palavras. O que pensam meus amigos, meus irmãos/ã, pais, minha filha, meu neto, a mulher que amo, os/as colegas e companheiros/as de trabalho e luta, pois, ali passamos a maior parte do tempo de nossas vidas. Acredito que aprimorando minha escuta estarei me relacionando com as pessoas oferecendo, não certezas, mas minha disposição para aprender com elas, para trocar nossas formas de ver o mundo e as coisas do mundo, reconhecendo que não há só uma possibilidade no que existe.

Marcio Cruz

Um comentário: